O Náufrago, Thomas Bernhard

Um livro estranho este, “O Náufrago”. Já me tinham avisado, já o tinha deixado nas primeiras páginas mas, ainda assim resolvi voltar a ele. Num único parágrafo de 145 páginas reproduz a forma como normalmente pensamos, penso eu. Repetindo ideias e revisitando, quase sem os alterar, os nossos “bibelots mentais”, aquela tralha mental de que nunca nos livramos e servem para nos identificarmos e apresentarmos aos outros quando somos visitados. É com essa tralha que dizemos quem somos. No caso do narrador os seus “bibelots” são Glenn Gould (o mamarracho central da sua sala de visitas), o seu amigo comum Wertheimer, o suicídio deste por causa do génio de Gould que impediu os outros dois de perseguirem uma carreira de pianistas virtuosos. O tema central do livro (ou do parágrafo) pode mesmo ser esta desistência perante a genialidade do outro que nos faz ver que as nossas ambições eram vãs ou desajustadas. Perante isto Wertheimer escolheu o suicídio, o narrador uma existência indolente dedicada vagamente a Glenn Gould com aproximações e afastamentos a uma biografia que se comprometeu a escrever sobre ele. Trata-se de um livro enganadoramente estático. É estático como um lago. Por fora não se mexe, não vai a lado nenhum mas, por dentro, é rico em simbioses e relações entre os seus elementos biológicos e minerais. Podemos tirar uma amostra de água aleatória em qualquer lugar do lago e ficamos com uma muito boa ideia do estado do ecossistema. Podemos ler duas ou três páginas deste livro e acontece o mesmo. Mas vale a pena porfiar, percorrer o lago todo pois há variações na repetição. Como as “Variações de Goldberg” interpretadas por Glenn Gould, que levaram Wertheimer ao suicídio e o narrador à indolência que se desenvolvem a partir de uma ária inicial. A ária que os dois amigos de Gould ouviram no átrio da escola e lhes tolheu as ambições e destruiu as vidas. Um livro em que as ideias se apresentam e não se resolvem e depois se rearesentam inalteradas ou apenas ligeiramente alteradas. Um livro como uma fuga de Bach. Um livro como uma amostra de água de um lago. Como a vida.

#17 – A indiferença

Foi pela janela do chuveiro que julgou ver o corpo do seu marido enforcado numa árvore no pequeno bosque nas traseiras de sua casa. Podia ser isso ou o roupão azul que ele às vezes punha ali a arejar uma vez que nunca o lavava. Desceu, preparou o lanche dos miúdos e verificou que saíam pela frente. Quando regressou à cozinha já lá estava ele a bebericar o café de boxers. Durante todo este tempo o seu ritmo cardíaco permaneceu inalterado nos 72 batimentos por minuto. No fundo era indiferente se era ele ou o roupão ali pendurado.

Mais Tentativas aqui.

Categorizar e Classificar

Ao categorizar estamos a criar grupos de coisas com alguma semelhança entre si. Por exemplo, o grupo das coisas naturais, o grupo das coisas inventadas pelo Homem, o grupo das coisas que se transformam, etc. Já classificar implica criar uma qualquer hierarquia dentro desse grupo. Por exemplo, do maior ao menor, das mais úteis às menos úteis e das mais rápidas às mais lentas.

Este exercício pretende estimular o pensamento crítico e criativo dos alunos nestas duas competências ao mesmo tempo que os incentiva a colaborar na resolução de problemas.

Exercício

1 – Dar aos alunos estas 12 imagens.

2 – Em grupos pequenos devem criar 4 conjuntos de 3 elementos (4X3) semelhantes e, dentro desses conjuntos ou categorias, inventar uma hierarquia qualquer que os classifique.

Ex: A tesoura, o rádio e a televisão foram feitos pelo Homem. A ordem indicada é a da antiguidade de cada objeto.

3 – Conforme o desempenho dos vários grupos podemos ir aumentando a dificuldade do exercício pedindo categorias cada vez maiores: 3X4, 2X6 e 1X12.

Neste último grupo, o mais difícil, os alunos devem encontrar algo que todos os elementos tenham em comum e criar uma qualquer hierarquia, ou ordem, entre eles. Para isso terão de exercitar-se numa forma de raciocínio criativo conhecido como pensamento lateral que é caracterizado, entre outras coisas, pela capacidade de se encontrar padrões pouco comuns entre os vários elementos.

4 – Esta é uma sessão sem um diálogo final organizado, mas podemos aproveitar o momento final de apresentação dos vários trabalhos dos grupos para irmos interrogando os alunos acerca dos critérios utilizados. Aqui estão alguns exemplos recentes: “Deus não criou as tesouras?”; “Tudo o que existe veio do sol?”; “Um rádio é mais útil que um carro?”; etc.

Analogias para Todos

Compreender analogias é uma importante competência de pensamento crítico envolvendo elementos cognitivos e linguísticos tais como identificar conceitos e perceber diferentes relações entre eles. Estabelecer comparações e semelhanças entre diferentes ideias requer também boas capacidades de abstração e raciocínio lógico assim como uma boa flexibilidade mental para sair dos quadros de pensamento habituais e explorar novos campos conceptuais até aí insuspeitos.

Uma vez que pensar por analogia implica também competências de pensamento criativo tais como o reconhecimento de padrões fora do comum e o relacionar de elementos que normalmente não estão relacionados (o que tem a ver uma chave com um telescópio?) temos aqui reunidos os elementos certos para um bom exercício de grupo onde as múltiplas competências dos diferentes elementos serão necessárias (experiência do mundo, conhecimento de várias disciplinas, competência linguística, perícia lógica, raciocínio abstracto, etc.). Individualmente nem todos somos bons em tudo, mas em grupo todos somos bons em muita coisa. Saber aproveitar o melhor que cada um tem para contribuir para o grupo é uma importantíssima atitude de Pensamento Crítico que importa cultivar com os nossos alunos.

Explicação

Começamos por explicar o que é uma analogia. Podemos dizer, por ex. que uma analogia é uma comparação que ajuda a entender algo usando coisas parecidas. Alguns exemplos muito simples:

O sorriso é para felicidade, como lágrimas são para tristeza.”; “A abelha é para flor, como pássaro é para ninho”; “As ondas são para o mar, assim como vento é para o céu.”; “O sol é para o dia, assim como a lua é para a noite.”

      Exercício

      1. Dividir as crianças em grupos de 3 ou 4 membros.
      2. Distribuir os cartões ou imagens dos oito elementos para cada grupo.
      3. Explicar que o objetivo do jogo é encontrar analogias entre os elementos e explicá-las.
      4. Cada grupo deve tentar criar o maior número de analogias entre os elementos.
      5. De seguida os grupos apresentam a analogia para os outros grupos, explicando por que escolheram aqueles elementos e qual é a relação entre eles.
      6. Os outros grupos podem fazer perguntas ou oferecer comentários sobre as analogias apresentadas.
      7. Repitir o processo até que todos os grupos tenham tido a oportunidade de apresentar suas analogias.

      Exemplo de analogia:

      • Elementos: Chave e Lupa
      • Analogia: Assim como uma chave abre portas, uma lupa amplia a visão.
      • Explicação: Tanto a chave quanto a lupa têm o poder de “abrir” ou “ampliar” algo. Enquanto a chave abre fisicamente portas, a lupa amplia nossa visão ao aumentar o tamanho dos objetos observados.

      Esse exercício não só ajuda as crianças a praticarem o raciocínio analógico, mas também promove a colaboração em grupo e a criatividade na formulação de conexões entre os elementos.

      Outro exercício de analogias aqui.

      #16 – Felicidade é outra coisa

      Felicidade é outra coisa

      De acordo com o Relatório Anual sobre a Felicidade Mundial encomendado pela ONU, Israel é o quinto país mais feliz do mundo. (PÚBLICO, 20/03/24).

      Como é possível a felicidade israelita? Como é possível ser-se feliz ao lado de Gaza, Khan Yunis e Rafah? Como ser feliz sabendo que o nosso país é responsável por “uma catástrofe humanitária épica” mesmo ali do outro lado do muro?

      Acho que não é possível. Acho que nestas circunstâncias os israelitas não podem ser verdadeiramente felizes. Ser feliz não é apenas ter dinheiro, as nossas necessidades satisfeitas, saúde, amigos e bem-estar. Sim, é preciso tudo isso, mas tudo isso não chega. Falta a tríade ética da justiça, da verdade e do bem para que alguém possa dizer que vive uma vida feliz. Sem isto não somos felizes apenas gostamos de estar vivos, que são coisas diferentes.

      O Estado da Palestina estava no Top 100  (99° lugar) neste campeonato dos “países mais felizes do mundo”, apesar de a Palestina não ser verdadeiramente um país. É outra coisa. Já Israel é um país mas não é verdadeiramente feliz. É outra coisa.

      Texto no PÚBLICO (2/2/24)

      Mais Tentativas

      # 15 – A “desengonça”

      “Geringonça”, foi o nome que se deu à solução governativa de esquerda saída das eleições legislativas de 2015. Essa engenhoca política, que consistia numa série de acordos entre o PS e os partidos parlamentares à sua esquerda (BE e PCP) mostrou-se mais sólida do que se esperava e do que o seu nome prometia. 

      André Ventura tentou por tudo construir uma engenhoca dessas à direita mas, pela amostra que tivemos do primeiro dia de trabalhos na Assembleia da República, mal se tentou pôr essa engenhoca a andar ela revelou-se extremamente desengonçada.

      Será que a direita, ao contrário da esquerda, não conseguirá melhor que esta “desengonça”?

      Texto no PÚBLICO

      # 14

      Onde é que estacionamos o carro?

      Quando nos esquecemos onde estacionamos o carro e deambulamos pelo parque de estacionamento do supermercado a empurrar um carrinho de compras cheio até cima, sentimo-nos ali entre o envergonhado e o divertido.

      Acho que é assim que nos sentimos hoje em Portugal. Envergonhados por termos perdido um governo que parecia sólido e estável, mas divertidos pelo que antecipamos que aí vem. O nosso carrinho de compras transborda de excedente orçamental e estamos desejosos de saber como o vamos gastar.

      No próximo dia 2 de Abril o nosso Presidente dá posse ao novo governo da República e aí já terá caído a vergonha. Já teremos encontrado o sítio onde deixámos o carro e tomaremos um novo rumo partindo desse lugar onde ficámos. Mas por quem será distribuído o conteúdo do carrinho de compras? 

      A política, apesar de tudo, também pode ser divertida.

      Mais Tentativas.

      Texto no PÚBLICO

      #13

      Há votos melhores que outros?

      Tem-se falado muito da quantidade de votos desperdiçados nas nossas eleições. Votos que “vão para o lixo”, diz-se. Não se tem falado tanto da qualidade dos votos nas nossas eleições. Em princípio, em democracia todos os votos valem o mesmo: ”um”.

      Ainda bem que é assim, no entanto, alguns votos parecem ter mais valor que outros. Quem, por exemplo, votou no partido ADN pensando que estava a votar na coligação AD votou de forma desatenta, desinformada e manipulada. O seu voto foi, qualitativamente, um mau voto mesmo que, quantitativamente, tenha o mesmo valor que todos os outros: “um”.

      Desatenção, desinformação e manipulação vêm em graus. Todos padecemos mais ou menos de todos esses vícios. Proteger a democracia passa por cultivar uma sociedade que nos permita tornar-nos cidadãos mais atentos, mais informados e mais críticos, menos propensos a ser manipulados e capazes de escolhas eleitorais mais esclarecidas. Só assim é que todos os votos valerão efectivamente o mesmo: “um”.

      Mais Tentativas.

      Este texto no PÚBLICO

      Linha do Tempo – Razões e Lógica

      Podíamos ter descoberto o planeta Urano antes de inventarmos o telescópio? Fazia sentido haver borrachas antes de termos lápis? Os jornais podiam ter sido criados antes da escrita? E a escrita veio antes ou depois das pinturas rupestres? As armas de caça surgiram antes ou depois das ferramentas agrícolas?

      Todas as respostas a estas perguntas não requerem memória e conhecimento histórico de datas mas, antes, raciocínio lógico, argumentativo e hipotético. Timeline , um jogo de tabuleiro criado por Frédéric Henry é, portanto, um excelente pretexto para exercitar o Pensamento Crítico em sala de aula com os nossos alunos. Se conseguirmos criar um ambiente de troca de ideias e leve competição, melhor ainda.

      Exercício

      1 – Desenhamos uma linha do tempo no quadro (ver imagem em baixo) e escolhemos uma das cartas para começar o jogo.

      2 – Uma a uma retiramos uma carta do baralho e colamos com bostik no quadro em cima da linha do tempo. Os alunos (em grupos) devem discutir e decidir em que lugar da linha do tempo deve ficar: antes de quê e depois de quê.

      3 – Para criar um ambiente competitivo saudável podemos atribuir pontos aos grupos que acertem na localização da carta. No final da aula o grupo com mais pontos ganha e pode fazer à frente de todos uma dança ridícula de celebração.

      #12

      Tordos em Gaza

      “Ser um birdwatcher é muito diferente de ser um fotógrafo da natureza (…); para os primeiros, um avistamento em que seja possível identificar as características que permitem reconhecer a espécie é satisfatório. Mesmo que seja apenas no visor do telescópio.” (Birdwatching, Fugas, 16/03/24)

      “Tentámos repetidamente mais ajuda e apelámos repetidamente a que fossem retirados os obstáculos de acesso. Em vez disso a situação das crianças piora a cada dia que passa. E os nossos esforços são prejudicados por restrições desnecessárias, que estão a custar a vida às crianças.” (Ajuda chega pela primeira vez a Gaza por mar, PÚBLICO, 17/03/24)

      Deste lado do “telescópio” com que olhamos o mundo somos como birdwatchers. Vemos e procuramos perceber o que se passa lá longe, sem qualquer intervenção nas vidas de quem observamos. A diferença é que um birdwatcher pode intervir mas não quer, nós queremos mas não podemos.


      Entretanto, em Gaza, crianças morrem como tordos.

      Mais Tentativas.

      Versão jornal PÚBLICO