LIVROS

“Filosofia em Directo” de Desidério Murcho

Quem anda atento ao trabalho editorial que é feito em Portugal sabe que qualquer livro que leve o selo de qualidade “Desidério Murcho” (seja uma tradução, revisão científica ou autoria) vale a pena ser comprado e levado para casa sem qualquer hesitação. A sua leitura posterior certamente confirmará os poucos €uros gastos na livraria sem olhar sequer para a contra-capa. Passou-se isso comigo com este pequeno livro.

O objectivo de “Filosofia em Directo” é, segundo o autor, “fazer o leitor assistir em directo, pela força do exemplo e sem mediações históricas nem academismos, ao raciocínio filosófico intenso.” Por outras palavras, neste livro procura-se ensinar a filosofar convidando o leitor a acompanhar os raciocínios de Desidério Murcho através de uma série de problemas filosóficos bastante complexos em torno de conceitos como a Liberdade, a Verdade, o Valor, o Sentido, Deus, a Realidade, etc.

Lê-lo de uma ponta à outra leva-nos a acompanhar os diferentes processos de raciocínio de que um filósofo se serve para ultrapassar os problemas que lhe vão surgindo pela frente. E essa leitura permite-nos, ao mesmo tempo que vamos conhecendo um pouco melhor alguns dos problemas filosóficos mais fundamentais, tomar consciência dos padrões de exigência e rigor intelectuais que aqueles que almejam ser filósofos devem procurar atingir. Eis alguns desses padrões:

– clareza na apresentação dos argumentos e na utilização dos conceitos;

– cuidado na ligação entre as várias razões e as respectivas conclusões;

– análise e avaliação dos pressupostos de uma determinada posição;

– consciência dos limites da prova argumentativa sem cair em relativismos fáceis;

consciência da nossa falibilidade epistémica;

– consideração para com as argumentações contrárias à nossa;

– atenção às implicações dos nossos raciocínios;

– profundidade no tratamento das questões;

– persistência perante a enormidade das questões filosóficas.

No entanto, tomar consciência desses padrões intelectuais é apenas um primeiro passo para a formação do filósofo.

Da mesma forma que um atleta não se treina a ver os Jogos Olímpicos na televisão, um filósofo não deve confiar a sua formação apenas e só à leitura de textos de filósofos (sejam eles Kant, Spinoza ou Desidério Murcho) pois corre o risco de, por falta de prática em pensar por si próprio, mais facilmente assimilar acriticamente os argumentos desses livros que os processos que levaram à produção desses mesmos argumentos. E é nesses processos, e não nos resultados a que foram chegando os vários filósofos que se encontra a essência da filosofia.

Ou seja a essência, ou espírito, da filosofia encontra-se na própria prática do pensamento filosófico e não nas ideias dos filósofos, da mesma forma que a essência do atletismo encontra-se na própria prática desportiva e não nas medalhas olímpicas que alguns atingiram.

O perigo de fazer atletismo pensando exclusivamente nas medalhas olímpicas é o mesmo de fazer filosofia tendo os olhos apenas nas ideias geniais dos filósofos: rapidamente reconhecemos a nossa incapacidade para lá chegar por nós próprios – às medalhas e às ideias – e rapidamente também reduzimos a nossa prática desportiva a assistir no sofá aos outros a correr na televisão.

O leitor facilmente concordará comigo que mesmo que a transmissão seja “em directo” esta actividade tem muito pouco, ou mesmo nada, de desportiva. A maior parte dos leitores já não concordará tão facilmente comigo quando digo que ler directamente as ideias dos filósofos tem muito pouco ou mesmo nada de filosófico. Mas, então, peço ao prezado leitor que me explique onde falha a minha analogia entre o atletismo e a filosofia.

Da mesma forma, fazer filosofia em directo é fazer como o Desidério pensando directamente sobre os problemas, não é ler o que o Desidério escreveu em “Filosofia em Directo”. Mas, não obstante, ler o que o Desidério escreveu é uma muito boa preparação para começarmos a pensar directamente sobre os problemas filosóficos.

Tomás Magalhães Carneiro – revistaumcafe@gmail.com

 

 

 


Socrates Café – a fresh taste of philosophy

Christopher Phillips

Ed. W.W.Norton & Company

ISBN 0-393-04956-6

Qual é a coisa qual é ela que não é fácil mas todos conseguem fazer, não é propriamente divertida mas dá muito prazer e é melhor quando é feita em grupo?

Não sei o que é que estão a pensar, mas a resposta é: a filosofia!

Fazer filosofia não é, de facto, fácil. Pensar filosoficamente é muito exigente e contrário à nossa tendência natural de nos deixarmos ir no que nos dizem ou acreditar no que é comum acreditar. Na realidade é mais fácil delegar a tarefa de pensar e decidir nos outros e nós fazemos isso constantemente sem que, muitas vezes, nos demos conta disso. Para contrariar esse conformismo é necessário pôr em causa as nossas crenças mais básicas, aquilo que temos por mais seguro e sobre o qual acentamos as nossas ideias e formas de estar. E fazer isso está ao alcance de qualquer ser humano racional. O intelecto é uma ferramenta que todos possuímos mas que pode ser sempre aperfeiçoada.

Fazer filosofia nem sempre é divertido pois é muito trabalhoso e, muitas vezes, inquietante. Começar a pôr em causa aquilo que sempre tivemos como verdades insofismáveis é uma experiência que só alguns espíritos mais arrojados se atrevem a tentar, mas uma vez que o iniciem, uma vez que deixem que a dúvida se instale e ganhe forma, esses espíritos ganham leveza e abertura, e essa é uma sensação prazerosa. Esses espíritos tornam-se sem dúvida alguma mais sábios, mesmo que no processo de filosofar não tenham aprendido quaisquer conhecimentos em concreto.

A filosofia é uma procura de compreensão e não uma procura de conhecimentos, e é por esse motivo que é melhor, ou mais eficaz, quando é feita em grupo juntamente com outras pessoas com o mesmo interesse em compreender.

Para um verdadeiro filósofo os outros não são “o inferno”, pois são os outros quem, fornecendo novas ideias e diferentes pontos de vista sobre os problemas, o ajudam a articular e examinar as suas próprias perspectivas, assim como as implicações e pressupostos das suas ideias.

A ideia fundamental que preside a um Café Filosófico (ver página ao lado) é a de que os seus frequentadores formam um grupo de investigação com um objectivo comum (a Verdade) e com uma vontade inabalável de a alcançar através do método socrático de investigação racional. Esse método consiste muito simplesmente em não aceitar nada que não esteja acente em boas razões.

Numa altura em que de todos os lados somos bombardeados por misticismos, ocultismos e espiritualismos vários (o kit guru de que fala Rupert Tempest na ilustração da primeira página), em que o fascínio exercido pelo irracional é cada vez maior, o bom e velho método socrático é certamente o “melhor antídoto contra o irracional” (p.11) que temos à nossa disposição.

Julgo que, grosso modo, esta é a mensagem que tiramos deste delicioso livro de Christopher Phillips. Em “Socrates Café” Phillips relata-nos as suas experiências de dinamizador de encontros de filosofia, abertos a quem queira participar e aos quais normalmente se dá o nome de Café Filosófico (FiloCafé, ou CaféFilo são outras denominações que podemos encontrar para estas sessões).

Na verdade os cafés, os salões paroquiais, as escolas e, até mesmo, as prisões onde Phillips dinamiza os seus Cafés Filosóficos são apenas os substitutos modernos para o Ágora, para o banquete, para a árvore frondosa junto a um riacho, para o passeio campestre ou para a cela onde Sócrates e os seus amigos se entregavam a horas de reflexão e debate filosófico. O que nos mostram os diálogos de Platão e o que nos mostra o livro de Christopher Phillips é que em qualquer sítio onde se reunam seres humanos há uma vontade latente de procurar compreender o mundo e o nosso lugar no mundo.

Não sejamos, porém, optimistas ao ponto de pensar que todos os homens quando se juntam para conversar pensam como filósofos. No início dissemos que fazer filosofia é muito difícil, pois também é muito difícil deixarmos de pensar com os nossos Egos, ou seja com as nossas vontades, com os nossos desejos e com as nossas emoções. É por isso que a maioria das discussões entre os homens acabam como começam: com cada lado entrincheirado atrás das suas paredes de preconceitos e ideias feitas, a berrar um com o outro mas sem nenhum ouvir o que o outro diz.

Para pensar filosoficamente é preciso, em primeiro lugar, deixarmos para trás os nossos Egos e encararmos os problemas que se nos colocam da forma mais imparcial possível. Devemos procurar imaginar-nos num ponto de vista um pouco acima de nós mesmos, observando a discussão e analisando os nossos próprios argumentos com a mesma atenção e imparcialidade com que analisamos os dos outros.

Depois de nos colocarmos neste estado ideal para o trabalho filosófico é altura de levantar perguntas. Como a filosofia começa pelo espanto e pela curiosidade, uma alma inquieta e curiosa não terá qualquer dificuldade em encontrar perguntas filosóficas, uma vez que elas estão em todo o lado.

Nos Cafés Filosóficos de Phillips podemos encontrar uma contabilista a perguntar “Como é que uma pessoa sensível e inteligente acaba num emprego de merda?” (p.64), e em seguida acompanhamos os seus colegas filósofos numa discussão sobre se somos realmente livres para escolher o nosso futuro. Ou então o vendedor de seguros que pergunta se “é possível ser amigo de alguém que não é nosso amigo?” (p.92), ao que se seguiu uma intensa discussão sobre a amizade, como é que sabemos quando começa e quando acaba uma amizade, o que esperamos dos amigos, etc. Uma discussão numa escola primária acerca do “Silêncio” levou alguns alunos a afirmar que apesar de terem estado em silêncio na sala, não estavam em silêncio nas suas próprias cabeças. Como nunca conseguimos silenciar os nossos pensamentos, o silêncio não existe (p.112).

Da mesma forma, dois namorados a passear de mão dada podem fazer-nos perguntar o que é o Amor, um despedimento injusto pode levar-nos a querer saber o que é a Justiça, a morte de uma criança pode levar-nos a duvidar da bondade (ou existência) de Deus, e a consciência da nossa própria morte pode fazer-nos pensar no sentido da vida.

A vida está cheia de matéria filosófica, e a técnica socrática para a analisar é sempre a mesma: perante um acontecimento comum e imediato procurar compreender, através do diálogo racional, o que é que de universal se esconde atrás desse acontecimento. Por exemplo, uma determinada reacção concreta de uma pessoa perante um quadro, uma passagem de um livro, ou um acontecimento quotidiano pode revelar muito acerca da forma como determinada pessoa se relaciona com o mundo e com os seus semelhantes: quais os seus conceitos de beleza, de arte, de utilidade, de respeito, de honra, etc.

Como os nossos conceitos e ideias moldam a nossa forma de ser e de estar, conhecer esses conceitos e ideias, e submetê-los a um exame crítico honesto e profundo é uma tarefa a que nenhum ser humano se deveria esquivar. Ou como disse Sócrates de forma lapidar: “A vida não examinada não é digna de ser vivida.”

Tomás Magalhães Carneiro

– artigo publicado na revista Um Café de Novembro de 2008

 

O Livro dos Grandes Opostos Filosóficos

Oscar Brenifier (texto), Jacques Després (ilustrações). Edicare Editora, 2007

Este é um livro que possibilita ao leitor dois níveis distintos de leitura. Uma leitura mais superfícial, rápida e económica e outra mais profunda, lenta e estimulante.

O primeiro nível de leitura é superficial pois o leitor pode simplesmente deliciar-se a passar os olhos pelas lindíssimas imagens virtuais de Jacque Després. É também rápida e económica pois pode ser feita em apenas quinze a vinte minutos na livraria não sendo por isso necessário comprar o livro.

Já o segundo nível (não necessáriamente uma segunda leitura) é uma leitura intelectualmente mais estimulante que pode dar ao leitor toda uma vida de matéria filosófica para pensar e é, por isso, uma leitura por natureza mais lenta e contemplativa. Se optar por este segundo nível aconselha-se, no entanto, a que compre o livro (cerca de 15€) e que o leve consigo para casa pois as livrarias costumam ter hora de fecho.

Oscar Brenifier apresenta-nos neste seu livro doze pares de opostos filosóficos. São eles: o Uno e o Múltiplo; o Finito e o Infinito; o Ser e a Aparência; a Liberdade e a Necessidade; a Razão e a Paixão; a Natureza e a Cultura; o Tempo e a Eternidade; o Eu e o Outro; o Corpo e o Espírito; o Activo e o Passivo; o Objectivo e o Subjectivo; a Causa e o Efeito.

Depois, para cada par de opostos, coloca-nos uma pergunta para pensar. Por exemplo, acerca do par Uno e Múltiplo, Brenifier coloca-nos a seguinte questão: “Um objecto é um objecto ou uma montagem de elementos, um conjunto de pequenas partículas?” (p. 10). Em seguida, e sempre acompanhado de uma ou várias ilustrações que lançam um olhar particular (de Jacques Després) sobre o problema, o autor apresenta-nos aquilo que pode ser o início de uma das discussões possíveis sobre esse par de opostos: “Tudo é simultaneamente uma coisa e várias coisas. (…) Isso explica porque nos sentimos, simultaneamente, uma única pessoa, com a nossa identidade própria, e várias pessoas, com as nossas mudanças de humor, ideias variadas e contradições.” (p. 12)

Vejamos agora algumas perguntas sobre outro par de opostos apresentado, o par Ser e Aparência.

“Uma bola furada continua a ser uma bola?” (p. 24), ou “O ser é sempre revelado pela aparência?” (p. 22). Estas perguntas abrem, por sua vez, caminho a outra discussão em torno deste par que nos pode conduzir a perplexidades como esta: “(…) podemos afirmar que nunca sabemos, realmente, o que uma pessoa ou uma coisa é. Um dia, fui um embrião minúsculo, depois serei um adulto e, finalmente, um esqueleto empoeirado. Como posso saber quem sou verdadeiramente?” (p. 24)

O leitor da Um Café pode verificar como funciona bem a dupla Brenifier/Després olhando para a imagem que serve de capa a este livro (em cima) e que ilustra o par Liberdade e Necessidade. Pode tentar aqui mesmo um pequeno exercício de pensamento partindo da pergunta colocada por Brenifier acerca do par proposto: “Pode a Liberdade existir sem se dar importância à Necessidade?” E olhando para a imagem de Després somos levados a pensar: “Pode o peixe ser livre fora do aquário, ou fora de água?” Agora continue o leitor a pensar por aí fora que, pode ter a certeza, “o pensamento é um caminho que nunca mais acaba”.

O objectivo e o gozo de se pensar os Grandes Opostos Filosóficos vem do facto de estes opostos serem, ao mesmo tempo, pontos de partida e pontos limitadores do pensamento possível.

Como escreve o autor no Prefácio: “O pensamento precisa dos opostos pois são essas grandes oposições universais que estruturam o nosso espírito, que lhe permitem reflectir.”

O pensamento sobre os opostos é um legado filosófico muito anterior a Brenifier. Para o filósofo pré-socrático, Héraclito de Éfeso (480 a.c.), era o pensamento (o logos) que unificava os opostos. Também para outro pré-socrático, Parménides de Eleia (515 a.c.) todos os opostos nada mais eram que partes de uma natureza total, perfeita e imperecível, o Uno.

Neste pequeno livro encontram-se portanto os ecos milenares destes dois primeiros filósofos. Não consta que, em termos de respostas às perguntas levantadas pelos opostos, se tenha avançado muito desde Parménides e Heráclito, mas ao arriscarmos ir onde eles foram, ao pisarmos os limites do pensamento possível estaremos, pelo menos, a viver à altura da sua herança. Além de que, como diz Brenifier, “tocar os limites do nosso pensamento é um prazer que podemos conhecer em todas as etapas da vida.”

Outras obras de Brenifier publicadas em Português (1)

Quem sou Eu?, ilustrações de Aurélien Débat, ed. Dinalivro

O que é viver em Sociedade?, ilustrações Frédéric Bénaglia, ed. Dinalivro

O que são o Bem e o Mal? ilustrações de Clément Devaux, ed. Dinalivro

O que é o saber?, ilustrações de Pascal Lemaitre, ed. Dinalivro

O que são os sentimentos?, ilustrações de Serge Bloch, ed. Dinalivro

1 – Todas estas obras de Oscar Brenifier são normalmente consideradas Filosofia para Crianças mas, como diz uma amiga (2), o seu trabalho “só muito reduzidamente se relaciona com a Filosofia com Crianças.”

Saiba mais sobre o autor em: http://www.brenifier.com/english/index.html

2 – Agradeço à Cátia Faria todas as sugestões de leitura e informações sobre Brenifier e o seu trabalho em filosofia.

Tomás Magalhães Carneiro

– publicado na revista Um Café de Setembro de 2008

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